sábado, fevereiro 26, 2005
o rio e o coração, o que os une?
O rio nunca está feito, como não
está o coração. Ambos são sempre
nascentes, sempre nascendo.
Ou como eu hoje escrevo:
milagre é o rio não findar mais.
Milagre é o coração começar sempre
no peito de outra vida.
Mia Couto, A Chuva Pasmada,
Lisboa, Ed. Caminho, 2004.
quinta-feira, fevereiro 24, 2005
Abres um livro
Dos lugares do amor, do medo, da incerteza, chega a melodia que o silêncio acolhe. E dos cenários que uns olhos corroeram, outros nascem, compostos letra a letra - partitura por onde corre o sangue.
Um livro abre-te e as palavras te assediam.
João Pedro Mésseder, Alguns Negativos,
Porto, Edições Plenilunio, 2001, p. 8.
quarta-feira, fevereiro 23, 2005
segunda-feira, fevereiro 21, 2005
Oficialização do Crioulo
O património linguístico em Cabo Verde é tão vasto e tão rico que não sei se haverá fôlego para o abraçar a um tão curto ou médio prazo, como o anunciado hoje pelo Ministro da Cultura.
"O Crioulo será a língua do ensino e da administração em Cabo Verde..."
Sim! Parece-me uma óptima ideia! Não me parece justo que o ensino se faça em português, quando muitos alunos do interior das ilhas só têm contacto com o português na Escola. Mas, não seria necessário antes da oficialização do crioulo uma preparação prévia do "terreno" para essa oficialização?
Há que criar a disciplina de crioulo nas escolas!... Mas, quem irá leccionar o crioulo? Todo o falante de uma determinada língua materna dispõe de instrumentos para a leccionar? E ainda antes desta questão não devemos ter um alfabeto que reuna unanimidade? Dicionários monolíngues e gramáticas com estudos linguísticos actuais. Tem de existir uma mobilização prévia dos linguísticas no sentido de conceber instrumentos de trabalho acerca da língua, para se proceder à sua aprendizagem e ao seu estudo nas Escolas de modo uniforme...
É certo que as regras da língua são concebidas pelos próprios falantes, o léxico da língua surge do seu uso quotidiano. Isto é, é a língua que faz a gramática e não os teóricos que fazem a língua; é a língua que faz o dicionário e não o contrário. Mas, ainda assim tendo leccionado por diversos anos em Cabo Verde justamente na área da linguística, conhecendo as realidades do crioulo em diversas ilhas, quer no sotavento, quer no barlavento, não imagino que estejam criadas as condições para a assunção definitiva do crioulo no ensino, de modo uniforme, rigoroso, homogéneo. Parece-me que isso implica vários congressos sobre o crioulo..., e sobretudo um aprofundamento da investigação linguística sobre o mesmo, em todas as ilhas.
Aproveitando o momento de reflexão governamental sobre a língua materna, e sobre o crioulo, deixaria a sugestão de um maior investimento na investigação linguística séria sobre o crioulo para que a partir de uma base real se concebam os instrumentos linguísticos, didácticos e pedagógicos adequados ao tratamento do crioulo nas salas de aula de todo o país. Para que esse ensino venha a ser um ensino qualificado, justo e igual para todos, tal como a língua crioula e os caboverdeanos merecem.
domingo, fevereiro 20, 2005
Ser Poeta
Lisboa , Editorial Caminho, 1992, p. 47.
quinta-feira, fevereiro 17, 2005
Viajar
bem devagarinho
até que as palavras
surgem no caminho.
E as palavras juntas
são como viagens...
Adeus! Adeus!
Vou voando nelas
para outras paragens
quarta-feira, fevereiro 16, 2005
A Incapacidade de Ser Verdadeiro
A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sombremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.
Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
- Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia.
Carlos Drummond de Andrande, Ibidem.
segunda-feira, fevereiro 14, 2005
Maneira de Amar
Carlos Drummond de Andrade, Histórias Para o Rei,
Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Record, 1999, p. 52.
domingo, fevereiro 13, 2005
A função da arte
Ele, o mar, estava do outro lado as dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!
sábado, fevereiro 12, 2005
Jogar com as palavras
Quem tem casa quer casar
como a linda Carochinha
só que o João Ratão morreu
dentro do caldeirão
e a história começa e acaba
com a carocha sozinha.
Quem casa não devia querer
uma casa com cozinha!
Campeonato de Língua Portuguesa
quinta-feira, fevereiro 10, 2005
Corsino Fortes, Árvore & Tambor
terça-feira, fevereiro 08, 2005
segunda-feira, fevereiro 07, 2005
sábado, fevereiro 05, 2005
Natal
continuação...
Já nessa época ele almejava dedicar-se à ficção e foi por volta dos nossos 16 anos que a sua primeira e única obra de fôlego viria à luz do dia. Porque já andava desesperado com a pacatez de uma ilha onde nada acontecia digno de ser passado para o papel, quando um dia deflagrou um pequeno mas desagradável incêndio numa das divisões de enfermaria da vila, praticamente o primeiro a que assistíamos nas nossas vidas e ainda por cima na aziaga hora do almoço. E de facto, dias depois Natal apareceu com a estória completamente escrita num caderno escolar de papel pautado, mas sem dúvida muito mais dramática do que na realidade tinha acontecido, porque, embora tivesse sido uma pequena ameaça, logo dominada com quatro baldes d'água, ele tinha preferido colocar quase todos os homens da vila em desorientadas correrias através do fogo, que na estória ameaçava alastrar e consumir todo o edifício, enquanto as mulheres transportavam latas d'água à cabeça no meio de gritos de arrepiar o coração. Ele, Natal, observador atento, assistia impávido «aos desesperados esforços daquela luta sem quartel contra a fúria de um dos elementos da natureza».
Infelizmente esse promissor início literário viria a desaparecer pia abaixo, graças à culposa distracção de seu irmão Miguel que, tendo ido de São Vicente para Boa Vista precisamente numa altura em que a ilha atravessava uma crise de papel higiénico, recebeu o caderno para ler, apreciar e comentar a estória, mas inadvertidamente o foi levando folha a folha para a retrete.
Foi o próprio Natal quem me contou o incidente. Mas, curiosamente, nem ele era um autor ofendido nem estava zangado com o irmão. Quando muito, pode dizer-se que ficou moderadamente aborrecido, latementando que a falta de atenção do irmão fosse obrigá-lo a outra vez tudo reescrever, agora sem a certeza de produzir obra de igual vulto. Ele não voltou a escrever senão metade da estória do incêndio, mas em compensação nem com a idade adulta viria a perder o vício da escrita. É da tradição da ilha os jovens aprenderem a tocar um instrumento qualquer, normalmente o violão, mas Natal não se contentou com a monotonia de um único instrumento e de uma assentada iniciou-se no violão, no violino, no cavaquinho e na viola. A par disso e nas horas vagas, dedicou-se a escrever um tratado sobre os seus sons musicais, com o objectivo de facilitar o ensino aos futuros instruendos.
Mas infelizmente foi chamado para a tropa. Enquanto prestava o serviços militar como furriel de infantaria, decidiu-se a escrever um livro sobre as artes da guerra, assim uma espécie de Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela, título que muito o impressionava embora desconhecesse em absoluto o seu conteúdo. Viria, porém, a ser desmobilizado sem ainda ter passado das primeiras linhas, e chegado a Cabo Verde logo começou a sofrer a influência do irmão que, entretanto, tinha abandonado o curso de Medicina para se dedicar ao espiritismo. Natal entusiasmou-se com esse assunto, criou o seu próprio centro espírita e dedicou-se a aprofundar essa área do conhecimento da vida fora da matéria com vista a escrever um catecismo doutrinário a respeito.
Essa disponibilidade espiritual do meu primo tem-no, porém, impedido de produzir obras de grande fôlego e só agora, já perto dos 50 anos, acabou por sentir que está correndo o risco de morrer sem prestar o sonhado contributo à sua terra para a qual se sente com deveres particularmente especicais.
E assim, há dias, após prévio telefonema a marcar encontro, ele deslocou-se ao meu escritório. Chegou carregando uma enorme pasta e disse logo que era uma visita oficial, de negócios, que não estava lá enquanto primo mas sim enquanto escritor, pelo que eu deveria colocar-me na minha posição de sócio da Ilhéu Editora e com ele discutir. E em resumo, propôs-me a publicação de uma obra em 3 volumes: Cabo Verde: Ontem, Hoje e Amanhã.
E a seguir falou-me da excelência do livro, um total de cerca de 1200 páginas dactilografadas, absolutamente necessário para as gerações vindouras conhecerem o país e a sua história. Tinha-o concebido em 3 partes: Ontem, dos primórdios à independência; Hoje, da independência até 13 de Janeiro de 1990; Amanhã, o nosso futuro radioso tendo em vista o turismo.
Chamada de urgência para conhecer a obra, a nossa gerente logo ficou entusiasmada com o título, nenhum melhor para iniciar a nova colecção que tinha em vista. Sorrindo, Natal confirmou que na verdade diversas pessoas tinham já achado o título excelente, um verdadeiro achado literário, e lá mesmo e de cor recitou para nós diversas passagens do livro.
Decidimos pela imediata assinatura do contrato, ficarmos logo na posse dos originais. Mas aí o Natal refreou-nos: Bem, estávamos a ser um bocadinho precipitados, disse, porque aquele tinha sido apenas um primeiro contacto exploratório, saber do nosso interesse. De facto, tinha já falado a dezenas de futuros leitores e todos eram unânimes em achar o título belo, mas na verdade ainda não tinha o livro completamente pronto, estava tudo ainda na cabeça, apenas a capa estava garantida. E abriu a imensa pasta e puxou uma folha de papel desenhada à mão, onde sobre uma imensa praia sobressaíam os dizeres: Cabo Verde: ontem, hoje e amanhã, por Natal Almeida. Por enquanto é só o que tenho, disse, mas logo que estiver escrito venho ter convosco. E despediu-se.
Germano Almeida, “O escritor meu primo” (excerto de),
in Estórias Contadas, Mindelo, Ilhéu Editora, 1999, pp. 42-45
Natal
Hoje vou recordar-vos/dar-vos a conhecer essa personagem! ;)
Habituou-se também a andar sempre e em toda a parte com um livro debaixo do braço e essa sua faceta intelectual era conhecida de toda a vila e mesmo de outras gentes do interior que amiúde o procuravam pedindo-lhe para escrever cartas e outras mensagens para fora das ilhas, porque não apenas ele gostava muito de aplicar aquele português de dicionário como também porque caprichava na caligrafia que tinha particularmente bonita e por isso era por todos admirado e gabado, o Natal não só é rapaz atencioso e prestável como também é homem da sua pena e dos seus livros, ninguém o apanha sem um livro na mão, a continuar assim aquele rapaz há-de ir longe, etc., e, embora nunca tivesse havido um preço determinado para os serviços, todos tinham o maior prazer em oferecer-lhe uma garrafa de leite, meia dúzia de ovos, um queijo ou qualquer outro produto da terra.
Mas para nós ele só viria a ser herói literário quando recebeu do irmão que estudava em São Vicente o maravilhoso livro As Cem Mais Lindas Cartas de Amor. Naquela época estávamos todos apaixonados, mas havia uma dificuldade que nenhum de nós sabia como ultrapassar: escrever uma carta de amor. O sistema preferencial para arranjar namorada era através de uma carta, mas a única coisa que sabíamos de certeza era que não podia ser uma carta igual às que pediam ao Natal para escrever e nenhum de nós sabia como escrever uma carta de amor. Eu pessoalmente tinha-me inutilmente fartado de pedir às minhas irmãs que me mostrassem alguma que tivessem recebido, mas essas cartas eram tratadas como verdadeiras relíquias porque eram o documento que selava o namoro e para o distrate só funcionava a sua devolução em mão própria. E assim eram tidas como objectos quase sagrados, infeliz aquela que tivesse má sorte de a perder porque para sempre ficava amarrada ao namorado que por causa da carta não devolvida adquiria sobre ela uma espécie de direito potestativo exercido em termos de «ela tem ainda a minha carta, nunca chegou a devolvê-la e por isso ainda temos»… «Temos» era uma abreviatura de «ter namoro» e bastava dizer fulano e fulana «é que têm» para se saber «têm» o quê.
E assim, quando Natal surgiu com o livro e nos mostrou, ficámos todos completamente deslumbrados perante palavras tão bonitas e frases com tanto sentimento e que traduziam todas elas quanto nós suspirávamos e aplicámo-nos a copiá-las uma por uma e foi aí que começámos a acreditar que ele de facto tinha à sua frente um brilhante futuro literário.
Germano Almeida, “O escritor meu primo” (excerto de),
in Estórias Contadas, Mindelo, Ilhéu Editora, 1999, pp. 41-42
sexta-feira, fevereiro 04, 2005
Arrasta o corpo da terra
E da cicatriz da mão
Que vicejam a memória dos séculos
Já não fala à árvore
Do seu falo de solidão
Da solidão não só... mas solidária