Natal
continuação...
Já nessa época ele almejava dedicar-se à ficção e foi por volta dos nossos 16 anos que a sua primeira e única obra de fôlego viria à luz do dia. Porque já andava desesperado com a pacatez de uma ilha onde nada acontecia digno de ser passado para o papel, quando um dia deflagrou um pequeno mas desagradável incêndio numa das divisões de enfermaria da vila, praticamente o primeiro a que assistíamos nas nossas vidas e ainda por cima na aziaga hora do almoço. E de facto, dias depois Natal apareceu com a estória completamente escrita num caderno escolar de papel pautado, mas sem dúvida muito mais dramática do que na realidade tinha acontecido, porque, embora tivesse sido uma pequena ameaça, logo dominada com quatro baldes d'água, ele tinha preferido colocar quase todos os homens da vila em desorientadas correrias através do fogo, que na estória ameaçava alastrar e consumir todo o edifício, enquanto as mulheres transportavam latas d'água à cabeça no meio de gritos de arrepiar o coração. Ele, Natal, observador atento, assistia impávido «aos desesperados esforços daquela luta sem quartel contra a fúria de um dos elementos da natureza».
Infelizmente esse promissor início literário viria a desaparecer pia abaixo, graças à culposa distracção de seu irmão Miguel que, tendo ido de São Vicente para Boa Vista precisamente numa altura em que a ilha atravessava uma crise de papel higiénico, recebeu o caderno para ler, apreciar e comentar a estória, mas inadvertidamente o foi levando folha a folha para a retrete.
Foi o próprio Natal quem me contou o incidente. Mas, curiosamente, nem ele era um autor ofendido nem estava zangado com o irmão. Quando muito, pode dizer-se que ficou moderadamente aborrecido, latementando que a falta de atenção do irmão fosse obrigá-lo a outra vez tudo reescrever, agora sem a certeza de produzir obra de igual vulto. Ele não voltou a escrever senão metade da estória do incêndio, mas em compensação nem com a idade adulta viria a perder o vício da escrita. É da tradição da ilha os jovens aprenderem a tocar um instrumento qualquer, normalmente o violão, mas Natal não se contentou com a monotonia de um único instrumento e de uma assentada iniciou-se no violão, no violino, no cavaquinho e na viola. A par disso e nas horas vagas, dedicou-se a escrever um tratado sobre os seus sons musicais, com o objectivo de facilitar o ensino aos futuros instruendos.
Mas infelizmente foi chamado para a tropa. Enquanto prestava o serviços militar como furriel de infantaria, decidiu-se a escrever um livro sobre as artes da guerra, assim uma espécie de Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela, título que muito o impressionava embora desconhecesse em absoluto o seu conteúdo. Viria, porém, a ser desmobilizado sem ainda ter passado das primeiras linhas, e chegado a Cabo Verde logo começou a sofrer a influência do irmão que, entretanto, tinha abandonado o curso de Medicina para se dedicar ao espiritismo. Natal entusiasmou-se com esse assunto, criou o seu próprio centro espírita e dedicou-se a aprofundar essa área do conhecimento da vida fora da matéria com vista a escrever um catecismo doutrinário a respeito.
Essa disponibilidade espiritual do meu primo tem-no, porém, impedido de produzir obras de grande fôlego e só agora, já perto dos 50 anos, acabou por sentir que está correndo o risco de morrer sem prestar o sonhado contributo à sua terra para a qual se sente com deveres particularmente especicais.
E assim, há dias, após prévio telefonema a marcar encontro, ele deslocou-se ao meu escritório. Chegou carregando uma enorme pasta e disse logo que era uma visita oficial, de negócios, que não estava lá enquanto primo mas sim enquanto escritor, pelo que eu deveria colocar-me na minha posição de sócio da Ilhéu Editora e com ele discutir. E em resumo, propôs-me a publicação de uma obra em 3 volumes: Cabo Verde: Ontem, Hoje e Amanhã.
E a seguir falou-me da excelência do livro, um total de cerca de 1200 páginas dactilografadas, absolutamente necessário para as gerações vindouras conhecerem o país e a sua história. Tinha-o concebido em 3 partes: Ontem, dos primórdios à independência; Hoje, da independência até 13 de Janeiro de 1990; Amanhã, o nosso futuro radioso tendo em vista o turismo.
Chamada de urgência para conhecer a obra, a nossa gerente logo ficou entusiasmada com o título, nenhum melhor para iniciar a nova colecção que tinha em vista. Sorrindo, Natal confirmou que na verdade diversas pessoas tinham já achado o título excelente, um verdadeiro achado literário, e lá mesmo e de cor recitou para nós diversas passagens do livro.
Decidimos pela imediata assinatura do contrato, ficarmos logo na posse dos originais. Mas aí o Natal refreou-nos: Bem, estávamos a ser um bocadinho precipitados, disse, porque aquele tinha sido apenas um primeiro contacto exploratório, saber do nosso interesse. De facto, tinha já falado a dezenas de futuros leitores e todos eram unânimes em achar o título belo, mas na verdade ainda não tinha o livro completamente pronto, estava tudo ainda na cabeça, apenas a capa estava garantida. E abriu a imensa pasta e puxou uma folha de papel desenhada à mão, onde sobre uma imensa praia sobressaíam os dizeres: Cabo Verde: ontem, hoje e amanhã, por Natal Almeida. Por enquanto é só o que tenho, disse, mas logo que estiver escrito venho ter convosco. E despediu-se.
Germano Almeida, “O escritor meu primo” (excerto de),
in Estórias Contadas, Mindelo, Ilhéu Editora, 1999, pp. 42-45
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