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sábado, fevereiro 05, 2005

Natal

É recorrente na prosa de Germano Almeida, essa figura deliciosa, carismática e caricatural: Natal. Quem conhece Natal???

Hoje vou recordar-vos/dar-vos a conhecer essa personagem! ;)



O Escritor Meu Primo



Quase desde a nossa infância que o meu primo Natal foi rapaz que gosta da sua escrita e lembro-me de que na nossa adolescência ele andava sempre de bolsos atafulhados de canetas de diversas cores, azul, vermelho, preto, para além de um lápis que transportava engatado atrás da orelha como tinha aprendido com os carpinteiros.
Habituou-se também a andar sempre e em toda a parte com um livro debaixo do braço e essa sua faceta intelectual era conhecida de toda a vila e mesmo de outras gentes do interior que amiúde o procuravam pedindo-lhe para escrever cartas e outras mensagens para fora das ilhas, porque não apenas ele gostava muito de aplicar aquele português de dicionário como também porque caprichava na caligrafia que tinha particularmente bonita e por isso era por todos admirado e gabado, o Natal não só é rapaz atencioso e prestável como também é homem da sua pena e dos seus livros, ninguém o apanha sem um livro na mão, a continuar assim aquele rapaz há-de ir longe, etc., e, embora nunca tivesse havido um preço determinado para os serviços, todos tinham o maior prazer em oferecer-lhe uma garrafa de leite, meia dúzia de ovos, um queijo ou qualquer outro produto da terra.
Mas para nós ele só viria a ser herói literário quando recebeu do irmão que estudava em São Vicente o maravilhoso livro As Cem Mais Lindas Cartas de Amor. Naquela época estávamos todos apaixonados, mas havia uma dificuldade que nenhum de nós sabia como ultrapassar: escrever uma carta de amor. O sistema preferencial para arranjar namorada era através de uma carta, mas a única coisa que sabíamos de certeza era que não podia ser uma carta igual às que pediam ao Natal para escrever e nenhum de nós sabia como escrever uma carta de amor. Eu pessoalmente tinha-me inutilmente fartado de pedir às minhas irmãs que me mostrassem alguma que tivessem recebido, mas essas cartas eram tratadas como verdadeiras relíquias porque eram o documento que selava o namoro e para o distrate só funcionava a sua devolução em mão própria. E assim eram tidas como objectos quase sagrados, infeliz aquela que tivesse má sorte de a perder porque para sempre ficava amarrada ao namorado que por causa da carta não devolvida adquiria sobre ela uma espécie de direito potestativo exercido em termos de «ela tem ainda a minha carta, nunca chegou a devolvê-la e por isso ainda temos»… «Temos» era uma abreviatura de «ter namoro» e bastava dizer fulano e fulana «é que têm» para se saber «têm» o quê.
E assim, quando Natal surgiu com o livro e nos mostrou, ficámos todos completamente deslumbrados perante palavras tão bonitas e frases com tanto sentimento e que traduziam todas elas quanto nós suspirávamos e aplicámo-nos a copiá-las uma por uma e foi aí que começámos a acreditar que ele de facto tinha à sua frente um brilhante futuro literário.


[... Que será do futuro de Natal? Virá a ter um brilhante futuro literário?]

Germano Almeida, “O escritor meu primo” (excerto de),
in Estórias Contadas, Mindelo, Ilhéu Editora, 1999, pp. 41-42