Natal
Hoje vou recordar-vos/dar-vos a conhecer essa personagem! ;)
Habituou-se também a andar sempre e em toda a parte com um livro debaixo do braço e essa sua faceta intelectual era conhecida de toda a vila e mesmo de outras gentes do interior que amiúde o procuravam pedindo-lhe para escrever cartas e outras mensagens para fora das ilhas, porque não apenas ele gostava muito de aplicar aquele português de dicionário como também porque caprichava na caligrafia que tinha particularmente bonita e por isso era por todos admirado e gabado, o Natal não só é rapaz atencioso e prestável como também é homem da sua pena e dos seus livros, ninguém o apanha sem um livro na mão, a continuar assim aquele rapaz há-de ir longe, etc., e, embora nunca tivesse havido um preço determinado para os serviços, todos tinham o maior prazer em oferecer-lhe uma garrafa de leite, meia dúzia de ovos, um queijo ou qualquer outro produto da terra.
Mas para nós ele só viria a ser herói literário quando recebeu do irmão que estudava em São Vicente o maravilhoso livro As Cem Mais Lindas Cartas de Amor. Naquela época estávamos todos apaixonados, mas havia uma dificuldade que nenhum de nós sabia como ultrapassar: escrever uma carta de amor. O sistema preferencial para arranjar namorada era através de uma carta, mas a única coisa que sabíamos de certeza era que não podia ser uma carta igual às que pediam ao Natal para escrever e nenhum de nós sabia como escrever uma carta de amor. Eu pessoalmente tinha-me inutilmente fartado de pedir às minhas irmãs que me mostrassem alguma que tivessem recebido, mas essas cartas eram tratadas como verdadeiras relíquias porque eram o documento que selava o namoro e para o distrate só funcionava a sua devolução em mão própria. E assim eram tidas como objectos quase sagrados, infeliz aquela que tivesse má sorte de a perder porque para sempre ficava amarrada ao namorado que por causa da carta não devolvida adquiria sobre ela uma espécie de direito potestativo exercido em termos de «ela tem ainda a minha carta, nunca chegou a devolvê-la e por isso ainda temos»… «Temos» era uma abreviatura de «ter namoro» e bastava dizer fulano e fulana «é que têm» para se saber «têm» o quê.
E assim, quando Natal surgiu com o livro e nos mostrou, ficámos todos completamente deslumbrados perante palavras tão bonitas e frases com tanto sentimento e que traduziam todas elas quanto nós suspirávamos e aplicámo-nos a copiá-las uma por uma e foi aí que começámos a acreditar que ele de facto tinha à sua frente um brilhante futuro literário.
Germano Almeida, “O escritor meu primo” (excerto de),
in Estórias Contadas, Mindelo, Ilhéu Editora, 1999, pp. 41-42
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