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terça-feira, março 21, 2006

Um casamento feito no céu


À Raquel, amiga de todas as minhas horas



Ela e ele nunca se entenderam. Embora ambos possam ser classificados pelos literatos como personagens redondas, tinham formas diferentes. Formas de ser, de oscilar, de rodar. Formas de coordenar tempo com movimento, formas, enfim, de circular no espaço reservado a cada um.
A incompatibilidade das formas era já suficiente para que eles não se entendessem, mas um outro factor mais cáustico, mais corrosivo, tornava qualquer hipótese de entendimento impossível: a incompatibilidade de horários. Ele rodava durante o dia, passeava a sua majestosa e redonda figura pelas luminosidades azuis ou cinzentas. Preferia as azuis e amuava nas cinzentas.
Ela era uma criatura da noite. A sua palidez denunciava essa escolha de vida, essa preferência pelos céus escuros, salpicados de estrelas e planetas.
Ela chegava quando ele partia. Ele chegava quando ela partia. Não é de espantar que nunca se tenham entendido! Arrastavam há séculos aquela relação, feita de desencontros permanentes, de silêncios contrariados, de lágrimas de chuva nele e chuva de estrelas nela.
Naquele dia, algo estalou dentro dele. De temperamento fogoso e impulsivo, decidiu, sem reflectir, retardar um pouco a sua entrada, para a apanhar na saída. Correu mal. Muito mal, mesmo. Discutiram, gritaram insultos, ou melhor, ele gritou, vermelho de fúria, enquanto ela apenas escutava, escondendo a mágoa atrás de um cínico sorriso amarelo, que ainda o enfureceu mais. A discussão, embora feia, durou pouco. O tempo urgia, ele tinha de entrar, ela tinha de sair. Da discussão apenas ficou a pairar no ar o clima gélido.
Foi por isso que naquele entardecer de Janeiro o Senhor Sol se pôs no mar, vermelhão de fúria e a Dona Lua surgiu no céu do crepúsculo, ainda de sorriso amarelo na sua cara de lua cheia. Mas ela não era de rancores e, pouco tempo depois, já se passeava redonda, branca, luminosa e bela pelo céu nocturno. Estava como nova.

Ah, claro, estávamos na lua cheia, mas para a história dar certo, ela devia ser nova.

M. N.
Ponte das Três Entradas, 26 de Janeiro de 2005