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sexta-feira, julho 08, 2005

A MORTE DOS POETAS

A MORTE DOS POETAS
(colagem com versos de Maria Sarmento)

A lua estava por metade
Quando tu partiste.
Lavaste as tuas calças pretas
Como nunca tinhas feito;
Passaste as cinco camisas
Para puderes vir buscar as outras
Como nunca tinhas feito;

Nunca mais vieste buscar as camisas.
Nem trazer a metade que roubaste à lua.

Agora que sequei
Podes regar o pó dos dias
Com a tua passada
Como antes eu regava as rosas:
Como o vidro dos outros nos desconhece!

Fecho com cuidado maternal o grito
Dentro das persianas;
Ato à roda dos cabelos da noite
Uma franja de riso no negro do céu:
Peço à noite, a dos gestos sossegados,
A serva humilde,
Que leve nos cabelos a poeira de luz
Que ilumina a janela do outro lado.

Ainda sou eu, mesmo que o dia raie
E eu não me veja de outra cor que as rosas
Brancas da cor dos mármores e dos lírios
Branca como se morrendo eu me não visse
Da cor dos lagos que me reflectem dormindo
Quando a lua é barco fugido do negro dos céus.
Eu sou um navegante de palavras...
Dou ao mar o rumor do vento falso,
Falho todas as rotas, acerto a tempestade
E, por querer perder-me, achei surpresa
Quando me vi parada olhando o longe.
Chamei por mim como numa montanha
O eco segue a voz que ali não houve
E o silêncio é espesso como o abismo
Onde me deito todas as noites da viagem
Que o tempo engole porque o filho é dele.
E a lua, no seu ventre liso e frio,
Chama à terra firme a sombra do navio
Onde outrora julguei ter embarcado.
Não fui eu que cheguei chorando,
Era outra a nau e a voz era emprestada.
Chamei por mim, de novo, e de novo
O vento frio fustigou a minha voz
E abriu no mar uma falsa clareira,
Um breve errar de luz.

Que agonia, a lenta espera
Por uma imagem que resolva o dia!
Que incerteza nas vozes e nos risos e nas lágrimas...
Que estranheza de ser me invade e narra, enfim.
A história de um vazio contra o vazio que há no dia.
O tempo empurra, arrasta, explica a contingência
De ser a anónima expressão de muitos rios parados,
A história que nunca foi porque não tinha que ser.
E contudo, ser humano e sadio como as bestas,
Transbordou do céu nesta paisagem de chumbo
Com o olhar perdido
Com que o poema dá às pombas a brancura,
Ao céu o movimento de asas soltas.
Olho os astros e o meu olhar de terra
Faz sementeira de asas no polimento escuro.
Que palavra de voo ágil e leveza eterna,
Mapa sem escala na inexistência das viagens,
Dará no chão do céu reflexos de poema?

Não dês à sílaba que cai na palavra como gota de água
Senão o sopro que enfola as bandeiras e as ondas.
Fá-los voar, esses rumores secretos e profundos.
Fecha as vogais, frente aos navios, o cais
É um perfil de vento para as gaivotas, de longe.
Atira as sibilantes para a montanha, vê-as cair no mar
A pingar uma voz de saudade, um movimento de alma,
Um poema infinito, renascido a cada ditongo de mel e astros,
De azul e espuma, de flocos de tristeza.
Guarda no côncavo da mão a concha misteriosa,
E se um deus tem sede
Que beba dessa mão as lágrimas que não choro.

Quem me trouxera um licor de ambrósia
Para sorver do ar este pano de vento
Que se me prende ao rosto
Que me persegue em véu, finisterra, finistempo.
Somos do ar quando seguimos
Pelo branco dos olhos o rumor das aves.
O nosso corpo é leve como a nossa vontade
De respirar a pausa no intervalo da voz,
A flor sem flor que adormeceu sem astros,
A flor sem ramos arrancada e nua
Sem amanhã para as mãos.
Um nada rodeado de nada
Para arder em silêncio.

Vem, ágil pomba negra da noite,
Cobrir com a tua grande asa
A memória
Por onde a nossa inquietação andou perdida
Como em palco deserto.
Só desta vez, só uma vez, ainda,
Colhe essas rosas de saudade.
Coloca na jarra os caules de desiguais tamanhos
E dispõe, assim, de mim, em memória,
Em cada laço que faço.

Em cada laço que faço
Perfaço o traço,
Baço o dia lasso
Que atiro do terraço
Ao espaço.
Faço caligrafias
Solto o laço.
Manias!

Uma folha aponta ao norte,
A mais pequena e frágil;
Para o sul vira a rosa vermelha,
A de sangue e de vida;
A outra, branca e triste,
Atira-a para o mar
Onde Ofélia
Ainda deve andar perdida.
Que dessas rosas, tantas,
Que a jarra contém
Possa ficar a mais viçosa,
A rosa do amor,
A que nunca morre
E só em saudade se colhe.

Bebo uma lágrima quente e o sal que me sabe
Desagua no mar o desejo de distância.
Por dentro do mar é onde deve estar
Quem assim se entrega ao acaso das marés.
Só para ouvir o rumor antiquíssimo
Dei por ganha a viagem e o naufrágio.
Perdida, nunca estive tão perto de saber
Que nunca é a mesma água.
Ouvimos outro som quando julgamos
Atravessar as pontes com outros barcos em baixo
E outras viagens por dentro da nossa viagem
E por não o sabermos é que vamos na amurada
Como um embrulho ali deixado pelos deuses.

Mas que sopro invisível se liberta
Da ideia de vento que o telhado abriga?
Deitar o sonho antes da hora...
Como andavas perdida, entre quintais,
Ó vinha da tristeza, ó canto chão!
Ó melodia adormecida nos meus ouvidos!
Ó mão que afaga, ó colo que se oferece,
Ó noite equilibrista do mundo
Na luz quente de um circo de lona,
Numa campânula, uma bolha de água morna
A querer fugir pela janela.
Devolve-me ao meu país do mar
E deixa-me dormir no coração das ondas
Que os poetas também morrem,
Mas morrem mais devagar do que nós.
A morte dos poetas
É qualquer coisa que continua a ser árvore
Mesmo sem a raiz ou para além dela.
A morte do poeta começa muito antes
Da noite e do dia da nossa mesma morte.
A morte dos poetas é uma ficção nossa
Como a vida é uma ficção de poetas.


Francisco Soares