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segunda-feira, junho 06, 2005

Ainda não nos comeu a terra, já nos tem comido toda a Terra

Estas medidas governativas deixam-me deprimida.
E, andando, ultimamente, envolvida nas malhas das burocracias vem-me à memória um excerto do Padre António Vieira, que no seu "Sermão de Santo António aos Peixes", nos dá sábias e ignoradas lições. Apesar de ser um texto seiscentista, ele continua bastante actual. Erros que se continuam a cometer... Tão comuns são que se não apercebem?
Enquanto assim for não há remédio para o estado da nação. Se não aprendemos com os séculos de história, para que serve a experiência?

«A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior.
Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer![...]

Olhai, peixes, lá do mar para a terra.[...] Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-se comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos, e os dos defuntos e ausentes; come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim,
ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: «Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» (Job, XIX-22).

Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo,
ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido

Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes,
Capítulo IV.