Manuel Lopes (n. 23-12-1907 - m. 25-01-2005)
«P. - Poderia evocar a Claridade? Como viveu o lançamento da revista?
Manuel Lopes - Simples. Um grupo de amigos pensou que se deveria criar uma revista que permitisse romper com a tradição clássico-romântica de motivos alheios à nossa realidade. Tínhamos matéria-prima que estimulava a nossa independência cultural. A tarefa era, portanto, fincar os pés na terra, pensar Cabo Verde, sentir Cabo Verde. Impunha-se aproveitar a matéria-prima local que os séculos de relativo abandono permitiram criar e conservar, urgia essa consciencialização. Assim nasceu a revista Claridade. Uma espécie de ovo de Colombo... A propósito da nossa revista, ocorre o apólogo de Chesterton, com que este autor inglês abre o seu livro Orthodoxy. "Já por diversas vezes imaginei escrever um romance sobre a aventura de um yachtsman inglês que, em virtude de cometer um ligeiro erro de cálculo na sua rota, veio a descobrir a Inglaterra sob a impressão de que se tratava de uma nova ilha..." Tudo parecerá novo e maravilhoso até à consciencialização da sua própria realidade, uma espécie de reencarnação de quem ressuscita ou julga valorização ou juízo das coisas que constituem um historial e uma rotina. Mas o propósito de fincar os pés na terra provinha da consciência duma individualidade própria, duma cultura bem caracterizada. Possuidores duma música e dança próprias, duma cozinha, de instrumentais lúdicos, e duma língua que só por si distingue o cabo-verdeano doutros povos, fácil nos foi achar a expressão dessa cultura através duma literatura original sem o esforço de procurar ser original, tanto escrevendo em crioulo como em português. A originalidade não residia em mostrar ser, mas, simplesmente, em ser. Na liberdade de expressão individual, sem programa determinado ("pode-se chamar programa ao simples propósito de fincar os pés na terra?"), libertar de preconceitos sociais, raciais, ideológicos e outros. Se me permite, vou ler-lhe esta passagem duma entrevista publicada no semanário açoriano A Ilha, há mais de trinta anos: "a revista Claridade foi antes de mais nada, a realização da necessidade de expressão de um grupo, isto é, resultou do floramento de experiências essenciais e, sobretudo, da tentação de exprimir de forma mais incisiva e aproximada o carácter caboverdeano..." e mais adiante: "Disse eu que a revista surgiu sem programa. Mas esse fincar os pés na terra teve para nós um significado especial. O impulso inicial implicaria esta metamorfose: em contacto com a terra os pés se transformariam em raízes, e as raízes se embeberiam do húmus autêntico das nossas ilhas. Claridade nasceu logo que a segunda fase da metamorfose se consciencializou..." A Claridade apresentou-se, segundo me parece, mais como testemunho social e telúrico de ipo específico, se assim me posso exprimir, do que político e ideológico (aliás os tempos não davam para aventuras do género, como é do conhecimento geral). Era a forma adequada, direi mais transparente, mais "inocente", de traduzir a nossa realidade. O conhecido apego à terra do povo caboverdeano e a emigração são duas condicionantes que demarcam as fronteiras do seu real quotidiano e caracterizam e justificam o seu comportamento no que diz respeito à luta pela sobrevivência, que naquelas ilhas é dramática, O passo inicial para a independência justifica-se pela cultura. O resto virá por acréscimo, como tempo e através da experiência e da observação. É melhor forma de fazer o boi andar à frente da carroça e não atrás...»
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